IRONIA

25-03-2012 21:19

 


   Eu suava frio, agitado, sozinho naquele amplo corredor, de onde ouvia os sons que insistentemente tentavam me tirar o foco daquela oportunidade única a qual eu não poderia desperdiçar.
 

     Eu não deveria ter feito com tanta força. Não deveria ter feito como fiz. Não precisava tanto deboche. A discussão foi desproporcional, não era pra ser tão áspero, dono da razão, mas essa sempre foi minha postura...

     A escola de que me recordo é apenas a da hora do recreio, do futebol, das fugas das aulas para o futebol, das meninas, das confusões, das confusões por causa das meninas e especialmente pela difícil relação com alguns professores.

    Não me lembro uma vírgula da minha alfabetização, simplesmente estão apagados da minha memória esses momentos. Tenho apenas duas vagas lembranças catecúmenas: a primeira quando minha mãe me ensinava tabuada com a dedicação e a paciência que cabiam num cabo de vassoura quebrado e que se quebraria ainda mais caso eu não correspondesse; e algumas tardes que passei na companhia da Tia Célia, uma vizinha careca que dava aula de reforço para as crianças da minha rua. Lá também não aprendi muita coisa, lembro-me apenas da expectativa que as crianças tinham de um dia, por algum infortúnio que fosse, ver aquela careca desnuda, sem seu peculiar lenço ou peruca.

    Os anos foram passando e eu, que sempre estudara na mesma escola estadual, do jardim ao último ano do ensino médio, fui aprendendo os atalhos que os bimestres me permitiam usufruir, e assim, na consciente lei do menor esforço, ia sendo aprovado todos os anos, estudando o suficiente apenas para decorar a matéria para a prova e quando não era possível, arquitetar ardilosamente algum mecanismo de cola, conluiado com outros cinco colegas.  Éramos chamados de “Os Cavaleiros do Zodíaco”.

    Entretanto, no 1º ano do segundo grau, como se dizia, minha visão de língua portuguesa mudou completamente; para ser sincero, a priori mudou o local para onde eu olhava, com a chegada de uma nova e bela professora, que me fazia querer entender profundamente sobre análise sintática. Ela bem que desconfiou dos inúmeros pedidos de esclarecimento de dúvidas que eu tinha, mas como eu me mostrava dedicado também ao aprendizado, ela se dispôs a caminhar comigo aquela jornada que faria toda a diferença na minha vida.

    Com a Língua Portuguesa finalmente eu estava me relacionando afetuosamente, de maneira profícua, mas sua irmã Literatura se mostrava para mim uma cunhada pavorosa. Eu certamente seria reprovado pela primeira vez, caso minha preciosa tutora de português não tivesse pensado - também pela primeira vez naquela escola - sobre a interdisciplinaridade, fazendo valer no último semestre daquele ano as notas em trabalhos conjuntos entre as duas disciplinas. Ela não só me ajudou a passar de ano, como me deu uma nova visão de metodologia a qual aplico até hoje.

    Na tentativa de ser mais esperto que o sistema, certa vez, naquele ano, sai de sala, fui a um lugar fora da escola e tirei cópia de um texto que deveria copiar, mas a preguiça não deixou, na volta, desafiei a professora ao rasgar a xérox e quando ela singelamente tentou me pagar o prejuízo, fiz ecoar por todos os corredores o barulho das moedas que joguei com toda força na lata de lixo metálica; o tumulto na escola foi colossal. Minha última esperança de evitar o revanchismo estava na redação final que valeria para as duas matérias. Esforcei-me ao máximo para me concentrar e pedi a professora para sair da sala para conseguir escrever tranquilo. Escrevi o melhor texto da minha vida, o único 10 de toda a turma; daquele ano escapei.

      No ano seguinte, deparei-me com a vida que se mostrava tirânica a minha frente. Precisava trabalhar e tinha um sonho: ser músico das forças armadas. Para tal, as únicas exigências eram as provas de música - teoria e prática - e língua portuguesa, em um nível que me parecia inatingível. Só tinha uma coisa a fazer: estudar de verdade, acho que pela primeira vez, e nessa fase, vi quanto tempo eu havia perdido na vida. Motivado pela evolução do ano anterior, prossegui rumo a meu objetivo, mas me deparei com um novo percalço: à medida que estudava, percebia que a profª atual deslizava em algumas questões que apresentava em sala de aula e mesmo em testes e provas, e lá estava eu, ponderando, argumentando, em meio a outras confusões memoráveis.

    Três colegas expectadores daqueles eventos tiveram a brilhante ideia de me acompanhar no plano da carreira militar e fizeram uma inusitada proposta, tendo em vista minha destreza em arguir a profª: eu lhes daria aula e eles me pagariam R$ 0,50 por cada questão certa na prova do concurso que prestariam. Depois de relutar contra a ideia de dar aulas, (logo eu, o pior aluno que um profº poderia ter. Uma ideia tão absurda quanto por seguro em um Fiat 147), porém pensei comigo: “dando aula estarei estudando”, e não é que aceitei. Foi indescritível ver que todo esforço valeu a pena: nós quatro havíamos sido aprovados, e ainda ganhei uma grana.

     O improvável veio a seguir com minha escolha e aprovação no vestibular para Letras na UERJ e minha boa relação com a leitura e a escrita. Seria irônico algum dos meus antigos professores lerem isso, mas passados 12 anos, escrevi um livro e continuo ministrando aulas, apaixonando-me cada dia mais por esse constante aprendizado e pelo ofício que tenho paralelamente àquele supracitado.

 

 

Comentários:

Data: 31-03-2012

De: Aretuza.

Assunto: Sujeito determinado!

É... que coragem... de escrever tudo isto AQUI!

Quer saber? Adorei. A-DO-REI "as vagas lembranças catecúmenas" e lembro bem da repercussão das moedas na lixeira (embora não estivesse mais no Murilo...). Sem contar os jogos de futebol nas aulas de Religião da Xediêr (lembra da Dona Bochêchê?)... Ah! E aquela confusão na festa da Taty, lembra? Rsrsrsrs... Bons tempos... éramos felizes e SABÍAMOS!!!

E por falar em saber... Sabia que vc seria bem-sucedido em qq coisa que fizesse! Vc é um excelente professor e isso não é motivo algum de surpresa (mesmo lendo o histórico de um aluno como o descrito...): é consequência natural no caminho de um cara que é um sujeito mais que determinado e vive plenamente o intervalo entre uma conquista e outra... Assim como não é de admirar que uma professora "boazuda" tenha sido sua inspiração... kkkkkk...

MUUUUUITO bom saber que o meu amigo continua o mesmo cara doce e saudoso de sempre...

Bj!

P.S.: Pôr continua com acentuação diferencial. rsrsrs

Data: 31-03-2012

De: Jan

Assunto: Re:Sujeito determinado!

Saudade mesmo, até mesmo das confusões de quase todos os dias (um dia ainda escrevo sobre aquela da D... "Ai meus coágulos", lembra? kkkkk); mas sem dúvida vc é uma das minhas grandes inspirações... um dia chego no seu nível. bjs

Data: 05-04-2012

De: Aretuza

Assunto: Re:Re:Sujeito determinado!

PELAMORDEDEUS!!! Agora ela é advogada, pode até processá-lo!!! Kkkkkkkkkk... Esquece essa história (digo esquecer a história de escrever sobre isso, pois o episódio - com a inenarrável participação do Vitinho - é inesquecível...).

Bj!

Data: 29-03-2012

De: Kelly

Assunto: Sujeito complicado!

Ótimo, hehehe! Bons professores só podem ter sido alunos questionadores e impossíveis! Parabéns pela caminhada pelo texto!

Data: 31-03-2012

De: Jan

Assunto: Re:Sujeito complicado!

Então vc deve ter sido muito impossível... Essa foi uma proposta do Paulo Guedes há uns anos; ele ficou meio surpreso, mas gostou. Obrigado, bjs

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